sábado, 10 de agosto de 2013

Sherlock Jr. (1924) - Buster Keaton



Sherlock Jr. é uma dos grandes clássicos de Buster Keaton, lendário ator e realizador americano. É a sua longa metragem de menor duração, com cerca de 44 minutos, e nela estão presentes traços que o celebrizaram, como o rosto que nunca ri, e que lhe valeu a alcunha de "Grande Cara de Pedra", a câmara rápida, ou a habilidade como acrobata; Buster descendia da Vaudeville, um espetáculo bastante popular à época, que unia dança, comédia, acrobacias, animais, ou magia. Destemido, fazia também questão de atuar nas cenas mais perigosas e neste filme - na cena em que a descarga de água o empurra violentamente contra a linha de comboio - isso viria a custar-lhe uma fratura no pescoço. O talento fez ainda dele referência para atores como Jackie Chan, também vitima de algumas fraturas em cenas sem duplo, ou Jonnhy Depp, que admirava a maneira de Buster comunicar "sem usar as palavras" e nutria um "fascínio pela ideia de falar sem falar".

A história gira em torno de um projecionista de cinema que sonha ser detetive e salvar a mulher por quem se apaixona. Começa por tentar conquistá-la com um presente, mas como em todas as histórias do género, há sempre um vilão que se atravessa no caminho. Nenhum dos dois tinha grandes posses e enquanto Sherlock usa o dinheiro que achou no chão, ao varrer o cinema, o rival rouba o pai da rapariga - interpretado pelo próprio pai de Buster Keaton - e incrimina o aspirante a detetive. Depois de falhar novamente na tentativa de repor a verdade, e revelar-se um falhado em vários campos, regressa ao trabalho no cinema, onde adormece e sonha ser aquilo que sempre ambicionou.

Sherlock era um sonhador e todo o filme gira à volta disso mesmo: primeiro, quando ele sonha ser detetive e conquistar a amada; depois quando o faz literalmente. Foi mais bem sucedido quando o fez a dormir, pois na realidade tinha uma gritante falta de jeito tanto para com a mulher - é ela quem tem de deixar a mão com firmeza sobre a cadeira, para darem as mãos - como para detetive, pois o seu livro de aprendiz tem várias etapas a serem seguidas, numa investigação, e ele não usa grande parte delas. Se o fizesse, eventualmente teria conseguido provar que as impressões digitais do rival se encontravam no papel da venda do relógio que usou para o incriminar. Keaton, como era seu apanágio, e como grande comediante que era, chama a atenção para essa falta de jeito de uma forma bastante engraçada, pois tudo acontece a Sherlock: desde escorregar em cascas de banana, até levar com uma descarga de água na famosa cena em que fratura o pescoço. O Buster Keaton realizador, parecia troçar com o personagem desastrado do Buster Keaton ator.

Sherlock também tinha complexos com a sua condição social e quando oferece um presente à mulher isso é clarificado por Buster Keaton, pois após comprar o mais barato, modifica o preço para que este pareça mais caro. A jovem vivia numa casa grande, o que indicia alguma riqueza, mas só Sherlock dá valor a esse facto. Por isso, quando adormece é um detetive famoso, com uma cartola grande, contrastando com aquela meio achatada que costumava usar, passa a usar bengala, tem um assistente e vive numa casa com uma porta blindada. Esse sonho viria a dar origem a um dos efeitos especiais mais marcantes da época, quando Sherlock sai do seu corpo e entra no filme que estava a projetar, onde se desenrola todo o sonho. Aliás, além deste são também destaque outros efeitos como Sherlock a desaparecer num truque de magia, ou a mudança de cenários repentina que ocorre no filme onde ele "entra".

Essa mudança de cenários é uma alusão não só à passagem do tempo, como também aos obstáculos que teve de enfrentar até se tornar no "melhor detetive do mundo", até porque essa mudança implica sempre uma armadilha. Simbolicamente, esses obstáculos são representados por um precipício, leões, deserto, mar ou neve e - após ultrapassá-los - Sherlock volta ao primeiro cenário como se a sua vida tivesse dado uma volta completa e regressasse ali outra pessoa. Um pormenor brilhante. É com esse estatuto que é chamado a resolver o crime no filme. Mais esperto e astuto, escapa a todas as armadilhas que lhe são montadas e com isso a própria sorte muda, passando a estar do seu lado. Com essa sorte à mistura, consegue salvar a mulher e resolver o caso. Ao acordar, permanece cabisbaixo com novo despertar para o seu estado de falhado. No entanto, a mulher por quem estava apaixonado descobre que ele foi acusado injustamente e vai ter consigo. Sherlock mantinha a falta de jeito, mas desta vez usa-se da "grande tela", para aprender como agir com a mulher na "pequena tela" em que se encontra, e imita o que o ator vai fazendo. Só não o consegue, e coça a cabeça intrigado, quando o casal do filme aparece repentinamente com filhos... 
Uma história bonita de um personagem inocente, que sonhava poder ser alguém como tantas pessoas na vida real, e com o brilhantismo do génio de Buster Keaton na fase gloriosa da sua carreira.


domingo, 4 de agosto de 2013

Os Incompreendidos (1959) - François Truffaut



Os Incompreendidos (Les Qautre Cents Coups) é um dos filmes mais importantes do cinema francês e a primeira longa metragem de François Truffaut, um dos pioneiros do movimento da Nouvelle Vague francesa. Supostamente autobiográfico, com o personagem principal Antoine Doiniel a ser inspirado na juventude complicada do próprio realizador, Incompreendidos foi bastante bem sucedido entre público e crítica, arrebatando ainda o prémio de melhor realizador em Cannes e uma nomeação para Oscar de melhor roteiro, também ele da autoria de Truffaut. É hoje, indubitavelmente, um dos marcos mais relevantes da história da 7ª arte.

O enredo gira em torno de Antoine Doiniel, um adolescente indesejado e incompreendido em casa, na escola e pela justiça. Logo na cena inicial, na sala de aulas, Antoine é o aluno apanhado pelo professor numa brincadeira e fica de castigo a um canto, escondido por uma mesa. Simbolicamente, esse pormenor refletia a sua vida de marginalizado e escondido dos olhares dos adultos, pois era como se a vivesse atrás daquela mesa. Eles não o viam verdadeiramente; não viam os seus sentimentos e as suas motivações e por isso era incompreendido. Truffaut, logo neste segmento, dá o mote para o resto filme.
A personalidade rebelde de Antoine advinha, em grande parte, da negligência que sofria em casa. Esta era um lugar frio, perigoso, sem a proteção e o carinho que lhe dariam condições para crescer de outra forma. Prova disso era o pijama roto, o quarto improvisado à entrada da casa, os fins de semana sozinho, com o padrasto nas corridas de carros, ou uma mãe negligente que, por exemplo, prefere gastar nela o dinheiro que o marido lhe tinha dado para comprar cobertores para o filho. Com alguma indiferença, Gilberte refere que Antoine "prefere o saco cama" e o jovem responde que ao menos esse o aquecia. Um paralelismo interessante é estabelecido mais à frente no filme, quando ele foge de casa e não tem qualquer medo de ficar num edifício perigoso e abandonado, pois a sua casa também era assim. Para Antoine, o conforto, o carinho e a proteção contidos em sua casa e naquele edifício eram praticamente os mesmos. Nenhuns. Um pormenor brilhante de realização.

Influenciado por René, o seu verdadeiro amigo, os dois jovens começam a faltar às aulas e a divertir-se; e Antoine acaba num carrossel que ilustrava bem a sua vida. Este gira e o adolescente, a determinada altura, fica de cabeça para baixo em relação às pessoas que assistiam, ou seja, perdido e com o mundo ao contrário. Era assim que ele via o mundo naquele momento, literalmente, e era assim que a sua vida se encontrava e da qual era refém, tal como do movimento do carrossel. Logo após, Antoine vê a mãe trair o marido e nesse momento nota-se bem a indiferença que o jovem nutre pela relação dos "pais", não dando grande relevância ao caso. Definitivamente não eram uma família comum. Na mesma noite, do seu "quarto" improvisado, ouve uma discussão entre os dois e o egoísmo de Gilberte é bem audível quando sugere que Julien o envie para um internato para ter "um pouco de paz". O seu bem estar era o mais importante e isso refletia-se no modo como (não) tratava do filho. Já ele, como desculpa por ter faltado às aulas, inventa que a mãe morreu. Foi o primeiro pensamento que veio à cabeça de Antoine, num momento que exprime de forma clara os seus sentimentos e estado de espírito. Na prática a mãe quase não existia. 

Após isso ter sido descoberto, o padrasto bate-lhe em frente a toda a turma, humilhando-o, e originando a primeira fuga de casa. Antoine rouba e alimenta-se de uma garrafa de leite, que bebe de uma forma sôfrega, na sua contínua luta pela sobrevivência. No entanto, após essa fuga, algo parecia mudar: Gilberte trata-o de forma diferente, mas, nessa mudança, o realizador volta a chamar a atenção para o desconforto que Antoine sempre sentiu, em oposição ao egocentrismo da mãe. Depois de o secar, Gilberte decide "promover" o filho à sua própria cama, onde ele se "sentiria mais confortável". Ela sempre soube que Antoine dormia a um canto desconfortável e frio e que o verdadeiro conforto estava reservado para si; ele era um estorvo. Aliás, antes de viver com a mãe, Antoine tinha estado num lar e em casa da sua avó e, com a morte dela, Gilberte viu-se na obrigação de o acolher, quando o seu desejo era ter feito um aborto... Antoine já era indesejado ainda antes de ter nascido e isso nunca mudou. Ainda na cama, enquanto falam, com Antoine a desviar o olhar, desvalorizando a tentativa de aproximação da mãe, ela decide fazer um acordo com o adolescente e propõe-lhe dinheiro se ele conseguir tirar uma das 5 melhores notas numa composição da escola. Aquela era a imagem de Gilberte: motiva-o com dinheiro, ao invés de amor. Motiva-o com aquilo a que ela realmente mais daria importância. Posteriormente, vivem no cinema um dos raros momentos felizes em família, mas a mudança seria efémera...

Inocentemente, Antoine acaba por escrever, na íntegra, as palavras de um livro do seu escritor preferido. Além de ter zero, por plágio, acaba suspenso e tem a consciência que seria a derradeira "oportunidade" que lhe teria sido concedida. René decide também forçar a expulsão da sala e vai embora com Antoine, oferecendo a sua casa para ele se esconder. Juntos, fomentam o companheirismo, mas também a rebeldia, alicerçada em vícios como o álcool e o tabaco, e o crime, quando decidem roubar. Seria mesmo o roubo a separá-los, pois Antoine acaba por ser apanhado e é denunciado pelo próprio "pai". Enquanto o jovem aguardava que decidissem o seu destino, numa espécie de jaula, a câmara faz um travelling para trás, e Antoine, com esse movimento, parece cada vez mais abandonado, sozinho e sem rumo. Em consequência, aumenta a pena e o carinho por parte do espectador, cada vez mais terno em relação ao jovem. Começa também a ser constante vê-lo atrás de grades, seja nessas jaulas, nas da carrinha que o leva para o centro de correção, onde liberta a primeira lágrima, ou no próprio centro. Lá, durante as visitas, percebe-se que a pessoa que realmente importava para ele era René. A mãe é autorizada a entrar, mas o fiel amigo é barrado, causando tristeza e desilusão na cara de Antoine que preferia a única pessoa que realmente se importou com ele desde a morte da sua avó; é reveladora a cena em que René rouba comida do seu próprio jantar para partilhar com o amigo.

A solução que Antoine encontra é a fuga daquele lugar. Corre sem parar e sem olhar para trás, corre sem destino, corre porque, mais uma vez, precisa fugir. Finalmente chega a um local onde desce as suas últimas escadas: Elas, durante todo o filme, funcionam como uma descida na vida de Antoine e várias vezes são usadas dessa forma pela realizador. Antoine descia-as todas as noites para despejar o lixo; desce quando decide fugir a primeira vez de casa e após roubar a garrafa de leite; desce após ser suspenso da escola; volta a descê-las com o amigo quando foge novamente de casa, para viver na dele, quando inicia a sua fase mais rebelde; e desce-as ainda, nesta cena final, na direção do mar que nunca tinha visto. E descendo ao nível do mar não poderia descer mais. A vida de Antoine estava no fundo depois de durante todo o filme ter sido pautada por uma espiral descendente e isso é representado pela constante descida de escadas.
Após chegar perto do mar, e ver-se sem saída, Antoine volta-se para a câmara e Truffaut, com um travelling para a frente, aproxima o espectador do jovem, de olhar vago, num momento emotivo e arrepiante, no qual a sua expressão parece perguntar-nos "E agora?". Assim acaba o filme, com um final aberto, mas aparentemente trágico, tocante e sobretudo genial. "Bravô!"

domingo, 21 de julho de 2013

Pulp Fiction (1994) - Quentin Tarantino



Um dos maiores clássicos do cinema moderno, Pulp Fiction é uma das obras de destaque de um dos maiores realizadores dos últimos anos, Quentin Tarantino. Com um elenco de luxo, com nomes como John Travolta, Bruce Willis, Samuel L. Jackson, Uma Thurman ou a portuguesa Maria de Madeiros, Pulp Fiction arrebatou e continua a arrebatar, passados quase 20 anos, critica e público por todo o mundo. Apesar disso, num ano em que concorriam outros filmes célebres como Forrest Gump ou Shawshank Redemption, apenas venceu um Óscar. Ainda assim o grande reconhecimento está no tempo e hoje, inequivocamente, é um dos filmes onde melhor assenta o epíteto de culto.

O clássico de Tarantino gira à volta de três histórias diferentes que em determinados momentos do filme se interligam. Assente em diálogos bastante ricos, mas igualmente engraçados, as histórias, também escritas pelo realizador - com a colaboração de um antigo colega dos tempos em que trabalhava numa loja de vídeos - tinham como um dos principais objetivos o de fazer rir. Tarantino, após as várias referências à violência presente em Pulp Fiction, chegou a dizer que o que mais o torturava no mundo era "as pessoas não saberem que era suposto se rirem"

O filme começa em analepse, com a história do assalto ao restaurante, que apenas seria retomada no final. Logo após esse inicio, o filme volta a recuar cronologicamente para a cena em que Vincent Vega e Jules vão vingar o seu chefe e reaver uma mala que lhe teria sido roubada. No caminho até ao apartamento, onde fariam o "serviço", têm um diálogo curioso com referências ao McDonald's e ao Burger King, numa alusão à "pop culture", uma constante ao longo do filme. Já dentro do prédio, Jules revela que Marsellus atirou um homem do 4º andar por fazer uma massagem nos pés da sua mulher e desencadeia um diálogo engraçado em torno disso, sobretudo para quem estaria em vias de ir assassinar alguém; um dos momentos, provavelmente, em que os espectadores incomodariam Tarantino se ele não ouvisse uma gargalhada. A entrada no apartamento marca uma viragem na postura das personagens, pois se até ali haviam sido retratados como pessoas comuns, ao passarem a porta tudo muda e é como se vestissem o "fato" de gangster.

Entretanto, começa também a ser contada a história de outra das personagens principais: o pugilista Butch Coolidge. Num bar, aparentemente de Marsellus, ambos combinam a derrota de Butch no 5º assalto do seu combate, para que o chefe do gang beneficie nas apostas. No entanto, Marsellus mexe com o orgulho de Butch, humilhando-o e dizendo que o orgulho "só prejudica, nunca ajuda"... "fuck pride". A cena regressa a Vincent Vega, que tem de levar Mia, mulher de Marsellus, a sair. No restaurante onde vão, surgem as mais evidentes referências à "pop culture", com funcionários vestidos de ícones americanos como Marlyn Monroe, James Dean, Ricky Nelson ou Buddy Holly. Após o jantar, já em casa de Mia, acontece pela primeira vez uma das grandes curiosidades do filme: Sempre que Vincent vai à casa de banho, algo de mal acontece a seguir. E foi o que aconteceu, com Mia a ter uma overdose enquanto Vega estava na casa de banho. Antes disso, ela dançava ao som de "Girl You'll Be a Woman Soon". E eventualmente seria, aparentando estar mais madura e consciente depois do susto que teve aquela noite.

O filme é retomado com Butch, pouco antes do seu combate, a relembrar a história do relógio de ouro que passava de pai para filho, já desde o tempo do seu bisavô. Essa lembrança acorda-o, literalmente, para a honra e o orgulho que os seus antepassados cultivaram, valores desprezados por Marsellus, como forma de o convencer a perder o combate. À saída do combate, Butch apanha um taxi de uma jovem colombiana e revela-lhe que os nomes americanos não têm qualquer significado, numa das referências ao significado vazio das coisas. Outros exemplos são quando Jules recita a bíblia sem ver naquelas palavra um sentido; Ringo, que no assalto do restaurante chama "garçon" a uma empregada, que lhe explica que isso significa "boy", nos Estados Unidos; ou o próprio significado das vidas, pois todos eles, incluindo Butch, nunca pareciam muito perturbados com as mortes que causavam. Ao regressar à pensão, onde passou a estar hospedado, encontra Fabienne, a namorada francesa, naquela que foi a primeira aparição da portuguesa Maria de Medeiros no filme. Nessa cena é feito um paralelismo com as gerações anteriores de Butch, pois Fabienne, que tinha ido buscar as suas coisas, esquece-se do relógio e ele, tal como os seus ascendentes, terá de passar por muito para o preservar.... eventualmente, seguindo a tradição familiar, para o oferecer ao seu filho. Pelo menos Fabienne dá vários indícios nesse sentido, como quando fala da barriga grande e redondinha que fica bem a uma mulher, o enorme apetite e os desejos ao pequeno almoço, ou quando parece ir dizer algo importante a Butch e repara que ele adormece.

Na luta para recuperar o relógio, Butch acaba por matar Vincent Vega, que, mais uma vez, vinha a sair da casa de banho. Finalmente encontra-se com Marsellus, por acidente, e os dois batalham até serem capturados por violadores; não sem antes, durante a batalha, Butch vingar-se da profanação que Marsellus fez em relação ao seu orgulho, um valor importante para o pugilista, que refere isso mesmo enquanto o agride. Depois de capturados, enquanto Marsellus é violado, Butch consegue libertar-se e, sem que o realizador o mostre explicitamente, recorda-se das palavras do capitão Koons - quando lhe entregou o relógio - que dizia que "dois homens numa situação adversa ficam responsáveis um pelo outro". No momento em que Butch se recorda dessas palavras, Tarantino faz um grande plano seu, permitindo que se veja na parede uma matrícula do Tennessee, local onde o seu bisavô comprou o relógio, numa alusão aos valores que descendiam desde ele até Butch e estariam simbolicamente representados naquele objeto. É interessante o facto do relógio ser em ouro, pois estabelece uma ligação perfeita entre o seu valor material e simbólico. Para salvar Marsellus, Butch escolhe ainda a arma que melhor personificaria a honra e o orgulho: uma espada.

Marsellus é salvo, mas, pela primeira vez, esteve numa posição em que não era ele quem ditava as leis. Ali, como referiu Maynard, só ele e Zed tinham autorização para matar. Marsellus, era retratado como uma espécie de Deus e Vega e Jules são como dois justiceiros que seguem as suas leis. Tudo o que o envolve é misterioso: nunca se sabe o que contém a mala; os motivos que o fizeram atirar um homem do quarto andar; e o próprio ao inicio aparece escondido das câmaras, destacando-se o penso na nuca que parece esconder algo. Marsellus era como um Deus punidor que ditava as leis, que mais não eram que as suas vontades. O próprio Vincent Vega, que se zangava por ter um simples risco no carro, não se importou de o destruir para salvar esposa de Marsellus, só porque ela era a sua esposa. É isso que Jules pode ter percebido no final, depois de recitar a passagem bíblica, pela primeira vez com significado para si, quando refere que na verdade representa ele a "tirania dos homens maus". Ele está a tentar libertar-se disso e espera que Ringo se liberte também. Da mesma forma que ele teve a sorte das balas não o atingirem, Ringo teria a sorte de Jules o deixar viver e concretizar o seu plano, estabelecendo assim um paralelismo com o seu caso e dando também a Ringo uma nova oportunidade, como ele teve.

quarta-feira, 17 de julho de 2013

Aurora (1927) - F.W. Murnau



"O filme mais belo do mundo". Foi assim que François Truffaut, um dos grandes nomes do cinema francês, classificou Aurora (Sunrise: A Song Of Two Humans) do lendário realizador alemão F. W. Murnau. Vencedor de 3 Óscares e primeiro filme a ter uma banda sonora gravada, Aurora foi o primeiro trabalho de Murnau realizado em Hollywood, ficando para a história como um filme americano. Isso permitiu-lhe dispor de um grande orçamento - a cidade foi um cenário construído propositadamente para o filme - mas que fez, também, com que o filme desapontasse nas bilheteiras. Foi realizado em pleno final da época do cinema mudo e The Jazz Singer, considerado o primeiro filme com "fala", sairia duas semanas depois, iniciando uma nova era na história do cinema.

Resumidamente, Aurora conta a história de uma mulher da cidade que foi passar férias ao campo e que se apaixona por um homem residente. Ele, casado, também se apaixona por ela e juntos parecem viver um romance de Verão. No entanto, a mulher da cidade queria-o para si e instiga-o a matar a esposa e vender a fazenda, para juntos viverem na cidade. Ele quase o faz, mas arrepende-se e percebe que o seu verdadeiro amor é a própria mulher. Reconquista-a e juntos vivem um dos dias mais inesquecíveis das suas vidas.
O realizador começa por caracterizar a mulher da cidade, que representaria o pecado. Apresentava-se de cabelo preto, com um penteado típico dos anos 20, a fumar, o que na altura ainda era meio tabu para as mulheres - apenas em 1929 o relações públicas Edward Bernays viria a promover a mulher fumadora em público - e os seus sapatos são reluzidos pela senhora de pensão que, tal como seu marido, jantam num cenário em curva descendente, aludindo às diferenças sócio-económicas em relação à mulher citadina. Por outro lado, a mulher da aldeia tem o cabelo loiro e apanhado, em sinal de pureza, e as suas roupas são humildes e pouco vistosas. A distinção entre o bem e o mal é feita desde logo na aparência das duas mulheres. Entretanto, a mulher da cidade assobia pelo homem à janela e surge pela primeira vez a referência ao triângulo amoroso: Murnau dá um plano dele encostado à parede, entre a porta da cozinha, onde estava a sua mulher, e a janela, para onde assobiava a amante, como forma de mostrar a divisão entre as duas.

O homem decide encontrar-se com a amante e, enquanto isso, surge um plano de duas senhoras que comentam como o casal se parecia com crianças e como era feliz; referem também que a mulher da cidade veio destruir tudo e uma delas - ao dizer que a esposa tinha ficado abandonada - olha na direção da câmara e, após um corte, aparece mesmo a imagem dela triste e abandonada pelo marido. Um corte idêntico ao que Murnau também usou em Nosferatu (1922) quando o Conde Orlok olha para o lado e a imagem corta para Ellen, como se também ele estivesse a olhar para ela, mesmo em espaços diferentes.
O homem encontra-se com a amante num cenário fantasmagórico, com árvores pontiagudas e uma escuridão apenas irrompida pela Lua cheia, como se estivesse a ir ao encontro de algo mau e sobrenatural. Um pormenor interessante é quando ele avança a cerca, numa alusão à expressão "pular a cerca" (trair).

Ao reencontrarem-se, os amantes beijam-se e abraçam-se; já a mulher traída, e em lágrimas, abraça e beija o seu filho. Com este corte, além do realizador transmitir uma ideia de simultaneidade nas duas ações, torna ainda mais condenável o ato do homem: Ela em casa a abraçar o filho e ele na rua a abraçar a amante.  Após a amante o convidar a ir para a cidade, sugere que ele mate a esposa, enquanto o agarra com as mãos numa posição que faz lembrar as garras de uma águia; o homem seria a sua presa. Inicialmente ele reage mal à ideia, mas ela volta a agarrá-lo e acabam os dois por "assistir" à vida na cidade, como se estivessem num cinema e aquilo fosse entretenimento. Com o homem já convencido, é feito um plano próximo das pegadas da amante a ir buscar uma espécie de canas, que fariam parte do plano de simular um acidente no afogamento da esposa, numa fantástica referência a vestígios de um crime. Murnau não o fazia por acaso.

No dia seguinte, e depois da esposa continuar a ser atenciosa, tapando-o de noite, o homem volta a ser assombrado pelo dilema de fazer, ou não, o que lhe fora pedido pela amante. No entanto surge uma espécie de fantasma da mulher da cidade em torno dele, aludindo ao "feitiço" que ela estaria a exercer em si. Desse modo convida mesmo a esposa para o passeio de barco, mas numa primeira instância o plano é interrompido pelo cão deles que pressente o perigo... E ele sim é fiel.
O marido parecia sob algum efeito, como se não estivesse si. Aliás, quando vai ter com a mulher para a atirar do barco, a sua postura faz lembrar uma criatura sobrenatural. Ainda assim, acorda da espécie de hipnose a tempo de evitar uma tragédia e é a partir deste arrependimento que o casal dá inicio ao dia memorável. Com medo, ela foge para a cidade e ele persegue-a com o intuito de a reconquistar. Após oferecer-lhe comida e flores, numa tentativa de redenção e de voltar a cuidar dela, acabam por entrar numa igreja, onde decorria um casamento, e onde se desenrola a cena mais emocionante do filme.

Com as palavras do padre - "Ela é jovem, inexperiente. Guie-a e ame-a... Guarde-a e proteja-a de todo o mal" - o homem chora em sofrimento e a música de fundo espelha a tristeza das suas lágrimas arrependidas. Quando o padre pergunta se "vai amá-la", o homem responde que sim e chora compulsivamente no colo da mulher, que o abraça. À saída, com as pessoas dispostas em ambos os lados, esperando os noivos do casamento que lá se realiza, e com as flores que ele lhe tinha dado a servirem de buquê, saem da igreja casados de novo, depois de lá entrarem separados, e passam um dia de divertimento na cidade, numa nova lua de mel. Após irem a um cabeleireiro, tirarem fotos de casados, surgirem anjos sob as suas cabeças apaixonadas e irem a parques de diversão, regressam à aldeia onde dão novo passeio de barco.
Desta vez surge uma tempestade inesperada e acontece o acidente que em tempos tinha sido planeado. Quando ele já pensava que a esposa teria morrido, ela é encontrada por um velho pescador e acabam os dois felizes com fim da noite escura, onde o mal acontecia, e o nascer da aurora. Ao estilo de Murnau, a luz do dia e a escuridão da noite assumiam parte relevante da narrativa.

Ainda assim, apesar do final feliz, há questões que ficam para reflexão. Apesar da redenção,  o homem parece ser capaz de tudo. Não só o do filme, mas todos os homens, e é isso que ele representa. Foi capaz de tentar esganar por duas vezes a amante - quando ela lhe propõe a morte da esposa e quando a culpa pelo desaparecimento dela no fim, ficando a dúvida se ele a mataria mesmo se ela não tivesse sido encontrada entretanto - e foi capaz de pensar no homicídio da mãe do seu filho e ameaçar um homem com uma navalha, após este ter tentado cortejá-la. Apesar de sermos capazes de tudo, e ele ser capaz de coisas impensáveis, o amor acabou mesmo por vencer e o perdão deu origem à segunda oportunidade de ser feliz.

terça-feira, 9 de julho de 2013

Easy Rider (1969) - Dennis Hopper



Easy Rider (Sem Destino, em Portugal) é um dos grandes clássicos do final dos anos 60 e inicio dos anos 70. Realizado por Dennis Hopper, um dos personagens principais, e escrito por ele, Terry Southern e Peter Fonda - o outro personagem principal - foi dos primeiros filmes independentes e o primeiro dessa categoria a ser distribuído por uma grande companhia, a Columbia Pictures. Classificado de "filme de baixo orçamento", com um investimento a rondar os 400 mil dólares, depressa se tornou num sucesso em todo o mundo, rendendo milhões, e tornando-se num filme de culto até aos dias de hoje. Foi também em Easy Rider que Jack Nicholson teve o seu primeiro grande papel, catapultando a sua carreira para uma das mais bem sucedidas na história do cinema e garantindo uma nomeação para o Oscar de melhor ator secundário.

O filme começa com a compra de droga no México, e a posterior venda já em solo americano, que daria dinheiro necessário para eles serem livres e chegarem a Mardi Gras, uma festa carnavalesca de New Orleans. Na cena da venda, junto ao aeroporto, o barulho turbulento da chegada dos aviões parece perspetivar a turbulenta viagem que estão prestes a iniciar. Segue-se a passagem em que Wyatt (Peter Fonda) guarda o dinheiro na sua lendária chopper - que tem hoje uma réplica no museu da Harley Davidson, tal como a de Billy (Dennis Hopper) - e essa cena é acompanhada pela primeira música do filme: The Pusher dos Steppenwolf. A banda sonora viria a tornar-se um dos destaques de Easy Rider e, além desta, podem ouvir-se ainda outros nomes clássicos do rock sessentista como Jimi Hendrix, The Band ou The Byrds. Ainda assim, o destaque fica para Born To Be Wild dos Steppenwolf, um hino para os motards e um clássico intemporal do rock.

Um dos atos mais simbólicos do filme acontece logo após. Prestes a iniciarem viagem, Wyatt livra-se do seu relógio, pois eles procuravam liberdade e as pessoas vivem "escravas" das horas e do tempo. Já no inicio do caminho, fruto do seu visual, Billy e Wyatt são pela primeira vez vítimas de preconceito ao serem ignorados pelo dono de uma pensão. O seu visual despertava ainda a curiosidade de todas as crianças que os viam, com o realizador a destacar as que correm para vê-los quando chegam à fazenda, onde são bem acolhidos, e ainda uma criança que os observa pela janela da bomba de gasolina onde abastecem. Elas viam neles algo fascinante, diferente, e, eventualmente, uma influência para uma futura mentalidade menos conservadora do que a das gerações anteriores.

A meio da viagem, depois de serem presos, conhecem George Hanson, um advogado alcoólico que acaba por tirá-los da prisão. Este personagem de Jack Nicholson viria a ser importante na revelação de vários males da sociedade americana e, logo na primeira conversa, revela que foram "usadas navalhas nos dois últimos cabeludos que prenderam", só por serem diferentes das pessoas daquela cidade que desejavam que todos tivessem cabelo curto. Na mesma conversa, meio a brincar, revela o estado de racismo na justiça ao dizer que só ficariam ali se tivessem matado alguém que não fosse branco. É igualmente interessante quando diz que estão todos na mesma "gaiola", uma frase que tem um alcance mais profundo do que simplesmente descrever onde estão, pois também ele vivia preso nos preconceitos da sociedade. À saída da esquadra, a policia recebe dinheiro de George, numa alusão à corrupação nas autoridades, e o advogado revela ainda o endereço de um bordel, no Mardi Gras, que havia sido fornecido por um governador, numa crítica à moral das altas instâncias.

Assim, procurando igualmente libertar-se, George segue viagem com os dois motards. Juntos irão sentir na pele, literalmente, o conservadorismo e o preconceito presentes nas regiões por onde passam. Não conseguiam sequer alugar um quarto e era nas conversas que tinham à noite, à volta da fogueira, que George apontava as raízes do mal da sociedade. Na noite em que é introduzido à marijuana, e após Bill supostamente ter visto um ovni, George diz que eles, os extraterrestres, são uma sociedade mais evoluída pois lá não existem guerras, nem sistemas monetários, e cada homem é o seu próprio líder. Na última região que visitam com George são novamente vítimas de preconceito quando num restaurante são provocados por habitantes homofóbicos e racistas, entre os quais a policia, que chegam a dizer que os motards nem "passariam no teste de gente". Nessa noite, George diz que essas pessoas não têm medo deles, mas do que eles representam; e eles representavam a liberdade. Já os que os julgavam viviam refugiados na frustração, na cobardia e no medo de serem livres. Como tal, "até matariam para provar que são". E assim seria, com a agressão aos dois motociclistas e o assassinato de George nessa noite.

Já sem ele, conseguem mesmo chegar a Mardi Gras. Vão ao bordel indicado por George e usam o LSD que lhes tinha sido dado pelo hippie a quem tinham dado boleia. Após esse momento, que teria sido o culminar do sonho, Wyatt diz que eles "estragaram tudo", após Billy se ter congratulado por finalmente "terem conseguido". Essa cena é das mais enigmáticas do filme e deu origem a várias interpretações. Uma delas pode ser o facto da liberdade ter sido conquistada com "dinheiro fácil", fruto da venda de droga. Wyatt, durante a viagem, gaba a sorte do fazendeiro que tem a sua própria terra para cultivar e após Billy se ter mostrado cético em relação às plantações dos hippies, diz quase filosoficamente que "eles conseguirão". Eles talvez, mas Billy e Wyatt não, porque estariam a tentar comprar a liberdade de forma desonesta e, daquela forma, o seu interior nunca mais seria livre. No final do filme acabam por ser alvejados por camionistas preconceituosos. Supostamente, chegou-se a equacionar uma continuação da história, por isso era possível a ideia de sobrevivência. No entanto, até pela visão da cena final que Wyatt tem, com a sua mota em chamas, quando no bordel lê que "a morte apenas fecha a reputação de um homem e determina se é boa ou má", é provável que tenham mesmo morrido.

Em ano de Woodstock, Easy Rider aliou a aventura e as belas paisagens, a uma crítica social forte e a uma lição importante quando se parte na busca de um sonho...

domingo, 7 de julho de 2013

O Imigrante (1917) - Charlie Chaplin



O Imigrante (The Immigrant), é um filme que conta a ida de um pobre imigrante, oriundo da Europa, para os Estados Unidos da América. Interpretado e realizado por uma das grandes lendas do cinema, Charlie Chaplin, nele estão os condimentos que celebrizaram o londrino como uma das maiores figuras da história da 7ª arte: A atuação exagerada, o humor e a inteligência com que a história é contada, numa altura em que a palavra ainda não fazia parte da arte cinematográfica.

O filme divide-se em duas partes: a viagem de barco e as primeiras horas do imigrante no país. Prontamente, a cena inicial revela que a viagem será de grande agitação, literal e simbolicamente, com o ator a surgir de cabeça para baixo na borda de um barco que se inclina para os lados com a corrente do mar. A hora do almoço classifica o tipo de imigrante (pobre e esfomeado) que ali se encontra, pois correm de forma desenfreada para o refeitório e o personagem de Chaplin chega mesmo a comer da mesma tigela, à vez, com o homem à sua frente, aproveitando o movimento do barco. É também neste segmento que ele se apaixona pela personagem de Edna Purviance, a sua eterna companheira nos filmes.

Segue-se uma advertência do realizador para "mais agitação" e, quando se pensa que o barco vai baloiçar ainda mais, a agitação provém da confusão gerada por um jogo a dinheiro. Com vitória de Chaplin, um dos tripulantes aceita mal a derrota e age com violência, primeiro, para depois roubar, e perder, o dinheiro da mãe de Edna, uma senhora idosa e doente. Chaplin, ao ver a Edna a chorar, decide colocar o dinheiro no seu bolso, mas é visto pela autoridade, que pensa que ele está a roubar. Na sequência, surge um pormenor de realização interessante, que se viria a repetir mais à frente do filme: Quando o ator passa uma esquina, o rumo da história também se altera. Neste caso, quando Chaplin a passa entra no campo da autoridade, que já o esperava do outro lado. Outro pormenor interessante está presente na chegada aos Estados Unidos. Os tripulantes, fascinados, começam a ver a Estátua da Liberdade, mas, contrastando com aquele símbolo, são amarrados, ou presos, com uma corda, para melhor os organizarem no momento de desembarcar.

Já na América, e depois de achar uma moeda no chão, Chaplin vai a um restaurante e é visível como o local lhe é estranho, pois não consegue manter uma postura correta. Ainda assim, numa tentativa ingénua de se comportar corretamente, começa a comer os feijões um por um. Chaplin acaba por lá reencontrar Edna e, pelo choro e a roupa escura da imigrante, percebe-se que a sua mãe teria morrido. Pouco depois, um cliente que não teria todo o dinheiro para pagar a conta é agredido pelos funcionários e é destacado o seu chapéu, no chão, como demonstração da perda de dignidade. O plano que o realizador faz dessa cena, revela que o seu personagem vê aquilo que lhe poderia acontecer se também lhe faltasse o dinheiro. Isso fá-lo pensar, prontamente, se o teria e depressa percebe que perdeu a moeda assim que a achou, pois o seu bolso estava roto, e outro pobre aproveitou a moeda para também ir ao restaurante. Contudo, o funcionário que a recebe também a deixa cair, aludindo o realizador ao seu bolso igualmente roto, remetendo-o para a classe social de Chaplin. Aliás, essa comparação é recorrente. Além do bolso, também a falta de compostura, de regras ou maneiras, também é alvo da comparação. Se o imigrante, inocentemente, não tem maneiras para comer num restaurante, o empregado não é melhor e não as tem para o servir.

Chaplin viria, então, a apanhar a moeda. No entanto, o funcionário, preconceituoso, confere se é real (o que não tinha feito para o outro pobre que pagou com ela) e descobre que é falsa, pois ela dobra-se. Para sorte de Chaplin e Edna, aparece um artista que os pretende contratar e que, ao pagar a sua própria conta, deixa uma gorjeta alta o suficiente para que Chaplin, com ela, consiga pagar a sua. A finalizar o filme, outro pormenor interessante, marcado pelo cruzar de uma esquina: Ao entrarem na nova rua, que fazia esquina com a do restaurante de onde tinham acabado de sair, fazem-no já noivos, ao cruzarem-na. Nessa rua havia um registo civil e acabam mesmo por se casar. Um filme com humor, mas socialmente muito crítico e a fazer eco de uma realidade que é transversal aos mais de 90 que nos separam desta obra do génio de Chaplin.


sexta-feira, 5 de julho de 2013

Harold and Maude (1971) - Hal Ashby


Aparentemente, Harold and Maude (Ensina-me a Viver em Portugal), representaria apenas uma abordagem à paixão entre um jovem de 20 anos e uma mulher prestes a fazer 80, de uma forma original e divertida. Contudo, secundado pela belíssima banda sonora da autoria de Cat Stevens, Harold and Maude vai mais longe e faz uma crítica à sociedade vigente, numa altura em que os valores de liberdade e tolerância estavam em voga e floresciam no seio da marcante "geração Woodstock". Por isso, além da história de amor, há uma acentuada atitude de rebeldia - por parte das duas personagens principais - relativamente às normas que lhes são impostas pela sociedade, numa critica que permanece atual.

Harold era um jovem pertencente a uma família rica. No entanto, o que abundava em ouro escasseava em liberdade, e isso impedia-o de descobrir a vida. Para tal, contribuía a forma contínua como era ofuscado pelos caprichos e vontades da sua mãe, Mrs. Chasen, pois ela assumia as suas escolhas profissionais e até pessoais. De maneira exemplar, o realizador demonstra isso mesmo quando ela preenche uma ficha de inscrição sobre Harold, para uma agência de encontros, e começa progressivamente a responder na 1ª pessoa. Como forma de chamar à atenção da sua progenitora, por várias vezes Harold simulou suicídios. Com estes, o realizador pretendia demonstrar o estado de espírito do jovem, pois ele sentia-se inexistente, sem um lugar no mundo, e esperava que cada "suicídio", ou alerta, surtisse efeito e assim pudesse "nascer de novo". O seu fascínio pela morte levou ainda a que o seu automóvel fosse um carro funerário, ou o seu passatempo preferido fosse assistir a funerais.

Curiosamente, foi num funeral - mais uma vez a relação morte/nascimento abordada de forma simbólica pelo realizador - que Harold pôde finalmente "nascer de novo". Maude também gostava de funerais e conhecê-la foi o seu novo nascimento, a sua nova vida. A protagonista era uma apaixonada pela vida e vivia-a segundo as suas próprias normas, desafiando as leis pelas quais se regia uma sociedade subtilmente criticada. É ela que ensina Harold a viver e lhe mostra o mundo que ele ainda tem à sua espera. Pelo caminho, são desafiados os poderes do exército, da policia, da igreja ou os parentais, questionando-se autoridade e preconceitos. Maude mostra a Harold que há muitos caminhos e que ele tem a liberdade de escolher sem as diretrizes de uma sociedade que aponta o dedo ao que não é "comum". Como diz a principal música do filme, "If you want to be free, be free. There's a millions things to be, you that there are...". 

No dia do seu octogésimo aniversário, e após uma surpresa de Harold, Maude viria a revelar que tinha tomado comprimidos para "partir". Já depois da sua morte, o filme termina com Harold a atirar o carro por um penhasco e a dançar e tocar o banjo que Maude lhe tinha oferecido. Ele nunca tinha vivido, e chega mesmo a dizer que "Não vivi. Morri algumas vezes"; já Maude viveu a vida plenamente. Ela partiu, mas passou a fazer parte, para sempre, de um Harold que começou a viver. "If you want to be me, be me..."