domingo, 4 de agosto de 2013

Os Incompreendidos (1959) - François Truffaut



Os Incompreendidos (Les Qautre Cents Coups) é um dos filmes mais importantes do cinema francês e a primeira longa metragem de François Truffaut, um dos pioneiros do movimento da Nouvelle Vague francesa. Supostamente autobiográfico, com o personagem principal Antoine Doiniel a ser inspirado na juventude complicada do próprio realizador, Incompreendidos foi bastante bem sucedido entre público e crítica, arrebatando ainda o prémio de melhor realizador em Cannes e uma nomeação para Oscar de melhor roteiro, também ele da autoria de Truffaut. É hoje, indubitavelmente, um dos marcos mais relevantes da história da 7ª arte.

O enredo gira em torno de Antoine Doiniel, um adolescente indesejado e incompreendido em casa, na escola e pela justiça. Logo na cena inicial, na sala de aulas, Antoine é o aluno apanhado pelo professor numa brincadeira e fica de castigo a um canto, escondido por uma mesa. Simbolicamente, esse pormenor refletia a sua vida de marginalizado e escondido dos olhares dos adultos, pois era como se a vivesse atrás daquela mesa. Eles não o viam verdadeiramente; não viam os seus sentimentos e as suas motivações e por isso era incompreendido. Truffaut, logo neste segmento, dá o mote para o resto filme.
A personalidade rebelde de Antoine advinha, em grande parte, da negligência que sofria em casa. Esta era um lugar frio, perigoso, sem a proteção e o carinho que lhe dariam condições para crescer de outra forma. Prova disso era o pijama roto, o quarto improvisado à entrada da casa, os fins de semana sozinho, com o padrasto nas corridas de carros, ou uma mãe negligente que, por exemplo, prefere gastar nela o dinheiro que o marido lhe tinha dado para comprar cobertores para o filho. Com alguma indiferença, Gilberte refere que Antoine "prefere o saco cama" e o jovem responde que ao menos esse o aquecia. Um paralelismo interessante é estabelecido mais à frente no filme, quando ele foge de casa e não tem qualquer medo de ficar num edifício perigoso e abandonado, pois a sua casa também era assim. Para Antoine, o conforto, o carinho e a proteção contidos em sua casa e naquele edifício eram praticamente os mesmos. Nenhuns. Um pormenor brilhante de realização.

Influenciado por René, o seu verdadeiro amigo, os dois jovens começam a faltar às aulas e a divertir-se; e Antoine acaba num carrossel que ilustrava bem a sua vida. Este gira e o adolescente, a determinada altura, fica de cabeça para baixo em relação às pessoas que assistiam, ou seja, perdido e com o mundo ao contrário. Era assim que ele via o mundo naquele momento, literalmente, e era assim que a sua vida se encontrava e da qual era refém, tal como do movimento do carrossel. Logo após, Antoine vê a mãe trair o marido e nesse momento nota-se bem a indiferença que o jovem nutre pela relação dos "pais", não dando grande relevância ao caso. Definitivamente não eram uma família comum. Na mesma noite, do seu "quarto" improvisado, ouve uma discussão entre os dois e o egoísmo de Gilberte é bem audível quando sugere que Julien o envie para um internato para ter "um pouco de paz". O seu bem estar era o mais importante e isso refletia-se no modo como (não) tratava do filho. Já ele, como desculpa por ter faltado às aulas, inventa que a mãe morreu. Foi o primeiro pensamento que veio à cabeça de Antoine, num momento que exprime de forma clara os seus sentimentos e estado de espírito. Na prática a mãe quase não existia. 

Após isso ter sido descoberto, o padrasto bate-lhe em frente a toda a turma, humilhando-o, e originando a primeira fuga de casa. Antoine rouba e alimenta-se de uma garrafa de leite, que bebe de uma forma sôfrega, na sua contínua luta pela sobrevivência. No entanto, após essa fuga, algo parecia mudar: Gilberte trata-o de forma diferente, mas, nessa mudança, o realizador volta a chamar a atenção para o desconforto que Antoine sempre sentiu, em oposição ao egocentrismo da mãe. Depois de o secar, Gilberte decide "promover" o filho à sua própria cama, onde ele se "sentiria mais confortável". Ela sempre soube que Antoine dormia a um canto desconfortável e frio e que o verdadeiro conforto estava reservado para si; ele era um estorvo. Aliás, antes de viver com a mãe, Antoine tinha estado num lar e em casa da sua avó e, com a morte dela, Gilberte viu-se na obrigação de o acolher, quando o seu desejo era ter feito um aborto... Antoine já era indesejado ainda antes de ter nascido e isso nunca mudou. Ainda na cama, enquanto falam, com Antoine a desviar o olhar, desvalorizando a tentativa de aproximação da mãe, ela decide fazer um acordo com o adolescente e propõe-lhe dinheiro se ele conseguir tirar uma das 5 melhores notas numa composição da escola. Aquela era a imagem de Gilberte: motiva-o com dinheiro, ao invés de amor. Motiva-o com aquilo a que ela realmente mais daria importância. Posteriormente, vivem no cinema um dos raros momentos felizes em família, mas a mudança seria efémera...

Inocentemente, Antoine acaba por escrever, na íntegra, as palavras de um livro do seu escritor preferido. Além de ter zero, por plágio, acaba suspenso e tem a consciência que seria a derradeira "oportunidade" que lhe teria sido concedida. René decide também forçar a expulsão da sala e vai embora com Antoine, oferecendo a sua casa para ele se esconder. Juntos, fomentam o companheirismo, mas também a rebeldia, alicerçada em vícios como o álcool e o tabaco, e o crime, quando decidem roubar. Seria mesmo o roubo a separá-los, pois Antoine acaba por ser apanhado e é denunciado pelo próprio "pai". Enquanto o jovem aguardava que decidissem o seu destino, numa espécie de jaula, a câmara faz um travelling para trás, e Antoine, com esse movimento, parece cada vez mais abandonado, sozinho e sem rumo. Em consequência, aumenta a pena e o carinho por parte do espectador, cada vez mais terno em relação ao jovem. Começa também a ser constante vê-lo atrás de grades, seja nessas jaulas, nas da carrinha que o leva para o centro de correção, onde liberta a primeira lágrima, ou no próprio centro. Lá, durante as visitas, percebe-se que a pessoa que realmente importava para ele era René. A mãe é autorizada a entrar, mas o fiel amigo é barrado, causando tristeza e desilusão na cara de Antoine que preferia a única pessoa que realmente se importou com ele desde a morte da sua avó; é reveladora a cena em que René rouba comida do seu próprio jantar para partilhar com o amigo.

A solução que Antoine encontra é a fuga daquele lugar. Corre sem parar e sem olhar para trás, corre sem destino, corre porque, mais uma vez, precisa fugir. Finalmente chega a um local onde desce as suas últimas escadas: Elas, durante todo o filme, funcionam como uma descida na vida de Antoine e várias vezes são usadas dessa forma pela realizador. Antoine descia-as todas as noites para despejar o lixo; desce quando decide fugir a primeira vez de casa e após roubar a garrafa de leite; desce após ser suspenso da escola; volta a descê-las com o amigo quando foge novamente de casa, para viver na dele, quando inicia a sua fase mais rebelde; e desce-as ainda, nesta cena final, na direção do mar que nunca tinha visto. E descendo ao nível do mar não poderia descer mais. A vida de Antoine estava no fundo depois de durante todo o filme ter sido pautada por uma espiral descendente e isso é representado pela constante descida de escadas.
Após chegar perto do mar, e ver-se sem saída, Antoine volta-se para a câmara e Truffaut, com um travelling para a frente, aproxima o espectador do jovem, de olhar vago, num momento emotivo e arrepiante, no qual a sua expressão parece perguntar-nos "E agora?". Assim acaba o filme, com um final aberto, mas aparentemente trágico, tocante e sobretudo genial. "Bravô!"

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