quarta-feira, 17 de julho de 2013

Aurora (1927) - F.W. Murnau



"O filme mais belo do mundo". Foi assim que François Truffaut, um dos grandes nomes do cinema francês, classificou Aurora (Sunrise: A Song Of Two Humans) do lendário realizador alemão F. W. Murnau. Vencedor de 3 Óscares e primeiro filme a ter uma banda sonora gravada, Aurora foi o primeiro trabalho de Murnau realizado em Hollywood, ficando para a história como um filme americano. Isso permitiu-lhe dispor de um grande orçamento - a cidade foi um cenário construído propositadamente para o filme - mas que fez, também, com que o filme desapontasse nas bilheteiras. Foi realizado em pleno final da época do cinema mudo e The Jazz Singer, considerado o primeiro filme com "fala", sairia duas semanas depois, iniciando uma nova era na história do cinema.

Resumidamente, Aurora conta a história de uma mulher da cidade que foi passar férias ao campo e que se apaixona por um homem residente. Ele, casado, também se apaixona por ela e juntos parecem viver um romance de Verão. No entanto, a mulher da cidade queria-o para si e instiga-o a matar a esposa e vender a fazenda, para juntos viverem na cidade. Ele quase o faz, mas arrepende-se e percebe que o seu verdadeiro amor é a própria mulher. Reconquista-a e juntos vivem um dos dias mais inesquecíveis das suas vidas.
O realizador começa por caracterizar a mulher da cidade, que representaria o pecado. Apresentava-se de cabelo preto, com um penteado típico dos anos 20, a fumar, o que na altura ainda era meio tabu para as mulheres - apenas em 1929 o relações públicas Edward Bernays viria a promover a mulher fumadora em público - e os seus sapatos são reluzidos pela senhora de pensão que, tal como seu marido, jantam num cenário em curva descendente, aludindo às diferenças sócio-económicas em relação à mulher citadina. Por outro lado, a mulher da aldeia tem o cabelo loiro e apanhado, em sinal de pureza, e as suas roupas são humildes e pouco vistosas. A distinção entre o bem e o mal é feita desde logo na aparência das duas mulheres. Entretanto, a mulher da cidade assobia pelo homem à janela e surge pela primeira vez a referência ao triângulo amoroso: Murnau dá um plano dele encostado à parede, entre a porta da cozinha, onde estava a sua mulher, e a janela, para onde assobiava a amante, como forma de mostrar a divisão entre as duas.

O homem decide encontrar-se com a amante e, enquanto isso, surge um plano de duas senhoras que comentam como o casal se parecia com crianças e como era feliz; referem também que a mulher da cidade veio destruir tudo e uma delas - ao dizer que a esposa tinha ficado abandonada - olha na direção da câmara e, após um corte, aparece mesmo a imagem dela triste e abandonada pelo marido. Um corte idêntico ao que Murnau também usou em Nosferatu (1922) quando o Conde Orlok olha para o lado e a imagem corta para Ellen, como se também ele estivesse a olhar para ela, mesmo em espaços diferentes.
O homem encontra-se com a amante num cenário fantasmagórico, com árvores pontiagudas e uma escuridão apenas irrompida pela Lua cheia, como se estivesse a ir ao encontro de algo mau e sobrenatural. Um pormenor interessante é quando ele avança a cerca, numa alusão à expressão "pular a cerca" (trair).

Ao reencontrarem-se, os amantes beijam-se e abraçam-se; já a mulher traída, e em lágrimas, abraça e beija o seu filho. Com este corte, além do realizador transmitir uma ideia de simultaneidade nas duas ações, torna ainda mais condenável o ato do homem: Ela em casa a abraçar o filho e ele na rua a abraçar a amante.  Após a amante o convidar a ir para a cidade, sugere que ele mate a esposa, enquanto o agarra com as mãos numa posição que faz lembrar as garras de uma águia; o homem seria a sua presa. Inicialmente ele reage mal à ideia, mas ela volta a agarrá-lo e acabam os dois por "assistir" à vida na cidade, como se estivessem num cinema e aquilo fosse entretenimento. Com o homem já convencido, é feito um plano próximo das pegadas da amante a ir buscar uma espécie de canas, que fariam parte do plano de simular um acidente no afogamento da esposa, numa fantástica referência a vestígios de um crime. Murnau não o fazia por acaso.

No dia seguinte, e depois da esposa continuar a ser atenciosa, tapando-o de noite, o homem volta a ser assombrado pelo dilema de fazer, ou não, o que lhe fora pedido pela amante. No entanto surge uma espécie de fantasma da mulher da cidade em torno dele, aludindo ao "feitiço" que ela estaria a exercer em si. Desse modo convida mesmo a esposa para o passeio de barco, mas numa primeira instância o plano é interrompido pelo cão deles que pressente o perigo... E ele sim é fiel.
O marido parecia sob algum efeito, como se não estivesse si. Aliás, quando vai ter com a mulher para a atirar do barco, a sua postura faz lembrar uma criatura sobrenatural. Ainda assim, acorda da espécie de hipnose a tempo de evitar uma tragédia e é a partir deste arrependimento que o casal dá inicio ao dia memorável. Com medo, ela foge para a cidade e ele persegue-a com o intuito de a reconquistar. Após oferecer-lhe comida e flores, numa tentativa de redenção e de voltar a cuidar dela, acabam por entrar numa igreja, onde decorria um casamento, e onde se desenrola a cena mais emocionante do filme.

Com as palavras do padre - "Ela é jovem, inexperiente. Guie-a e ame-a... Guarde-a e proteja-a de todo o mal" - o homem chora em sofrimento e a música de fundo espelha a tristeza das suas lágrimas arrependidas. Quando o padre pergunta se "vai amá-la", o homem responde que sim e chora compulsivamente no colo da mulher, que o abraça. À saída, com as pessoas dispostas em ambos os lados, esperando os noivos do casamento que lá se realiza, e com as flores que ele lhe tinha dado a servirem de buquê, saem da igreja casados de novo, depois de lá entrarem separados, e passam um dia de divertimento na cidade, numa nova lua de mel. Após irem a um cabeleireiro, tirarem fotos de casados, surgirem anjos sob as suas cabeças apaixonadas e irem a parques de diversão, regressam à aldeia onde dão novo passeio de barco.
Desta vez surge uma tempestade inesperada e acontece o acidente que em tempos tinha sido planeado. Quando ele já pensava que a esposa teria morrido, ela é encontrada por um velho pescador e acabam os dois felizes com fim da noite escura, onde o mal acontecia, e o nascer da aurora. Ao estilo de Murnau, a luz do dia e a escuridão da noite assumiam parte relevante da narrativa.

Ainda assim, apesar do final feliz, há questões que ficam para reflexão. Apesar da redenção,  o homem parece ser capaz de tudo. Não só o do filme, mas todos os homens, e é isso que ele representa. Foi capaz de tentar esganar por duas vezes a amante - quando ela lhe propõe a morte da esposa e quando a culpa pelo desaparecimento dela no fim, ficando a dúvida se ele a mataria mesmo se ela não tivesse sido encontrada entretanto - e foi capaz de pensar no homicídio da mãe do seu filho e ameaçar um homem com uma navalha, após este ter tentado cortejá-la. Apesar de sermos capazes de tudo, e ele ser capaz de coisas impensáveis, o amor acabou mesmo por vencer e o perdão deu origem à segunda oportunidade de ser feliz.

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